Ortega (Técnica) – X A técnica como artesanato. A técnica do técnico

Passemos ao segundo estádio: a técnica do artesão. É a técnica da velha Grécia, é a técnica da Roma pré-imperial e da Idade Média. Eis aqui em rapidíssima enumeração, alguns de seus caracteres:

1.° O repertório de atos técnicos cresceu enormemente. Não tanto, contudo, — é importante notá-lo — para que o súbito desaparecimento, crise ou obstáculo das técnicas principais fizesse materialmente impossível a vida das coletividades . Mais claro ainda: a diferença entre a vida que leva o homem neste estádio com todas suas técnicas e a que levaria sem elas, não é tão radical que impedisse, falhadas ou suspensas aquelas, retrotrair-se a uma vida primitiva ou quase primitiva. Mesmo a proporção entre o não técnico e o técnico não é tal que o técnico se tenha feito a base absoluta de sustentação. Não: mesmo a base sobre que o homem se apoia é o natural — pelo menos, e isto é o importante, assim o sente ele — e por isso, quando começam as crises técnicas, não se apercebe que estas impossibilitarão a vida que leva; por isso não reage a tempo e energicamente ante aquelas crises.

Mas feita esta ressalva e comparando a nova situação técnica que este segundo estádio representa com a primitiva, convém sublinhar o contrário: o enorme crescimento dos atos técnicos . Não poucos destes se fizeram tão complicados que não pode exercê-lo toda e qualquer pessoa. É preciso que certos homens se encarreguem a fundo deles, dediquem a eles sua vida: são os artesãos. Mas isto acarreta que o homem adquira então uma consciência da técnica como algo especial e aparte. Vê a atuação do artesão -— sapateiro, ferreiro, pedreiro, seleiro, etc. — e entende a técnica sob a espécie ou figura dos técnicos que são os artesãos; quero dizer: ainda não sabe que existe técnica, mas já sabe que existem técnicos-homens que possuem um repertório peculiar de atividades que não são, sem mais nem menos, as gerais e naturais em todo homem. A luta tão moderna de Sócrates com as pessoas de seu tempo começa por querer convencê-las de que a técnica não é o técnico, mas uma capacidade sui generis, abstrata, peculiarissima, que não se confunde com este homem determinado ou com aquele outro. Para eles, ao contrário, a sapataria não é senão uma destreza que possuem certos homens chamados sapateiros . Essa destreza poderia ser maior ou menor e sofrer algumas pequenas variações, exatamente como acontece com as destrezas naturais, o correr e o nadar, por exemplo; melhor ainda, como o voar do pássaro e o correr do touro. Bem entendido, eles sabem que a sapataria não é natural — quero dizer, não é animal — mas alguma coisa exclusiva do homem, mas que o possui como um dote fixo e dado de uma vez para sempre. O que tem de somente humano é o que tem de extranatural, mas o que tem de fixo e limitado lhe dá um caráter de natureza — pertence, pois, a técnica à natureza do homem — é um tesouro definido e sem ampliações substantivas possíveis. Assim como o homem se encontra ao viver instalado no sistema rígido dos movimentos de seu corpo, também se encontra instalado, ademais, no sistema fixo das artes, que é como se chamam em povos e épocas deste estádio as técnicas. O sentido próprio de techne, em grego, é esse.

2.° Tampouco o modo de aquisição das técnicas favorece a clara consciência desta como função genérica e ilimitada. Neste estádio se dá ainda menos que no primitivo — ainda que de pronto se pensaria o contrário — ocasião para que o fato de inventar faça surgir na memória a ideia clara, isolada, isenta, do que é a técnica em verdade. Ao fim e ao cabo, os loucos inventos primitivos, tão fundamentais, precisaram destacar-se melodramaticamente sobre a cotidianeidade dos hábitos animais. Mas no artesanato não se concebe a consciência do invento. O artesão tem que aprender em longo aprendizado — é a época dos mestres e aprendizes — técnicas que já estão elaboradas e vêm de uma insondável tradição. O artesão é inspirado pela norma de encaixar-se nessa tradição como tal: está voltado ao passado e não aberto a possíveis novidades . Segue o uso constituído. Produzem-se, contudo, modificações, melhoras, em virtude de um deslocamento contínuo e por isso mesmo imperceptível; modificações, melhoras, que se apresentam com o caráter não de inovações substantivas, mas, antes, como variações de estilo nas destrezas. Estes estilos de tal ou qual mestre se transmitem em forma de escolas; portanto, com o caráter formal de tradição.

3.° Outra razão existe, e decisiva, para que a ideia da técnica não se desprenda e se isole da ideia do homem que a exerce, e é que contudo o inventor somente chegou a produzir instrumentos e não máquinas. Esta distinção é essencial. A primeira máquina propriamente tal, e com isso antecipo o terceiro estádio, é o tear de Robert criado em 1825 . É a primeira máquina, porque é o primeiro instrumento que atua por si mesmo e por si mesmo produz o objeto. Por isso se chamou self-actor, e daí selfatinas [fiação, fiadura] . A técnica deixa de ser o que até então havia sido, manipulação, manobra, e se converte sensu stricto em fabricação. No artesanato o ‘Utensílio ou ferramenta é somente suplemento do homem. Este, portanto o homem com seus atos “naturais”, continua sendo o ator principal, Na máquina, ao contrário, passa o instrumento para o primeiro plano e não é ele quem ajuda ao homem, mas ao contrário: o homem é quem simplesmente ajuda e suplementa a máquina. Por isso ela, ao trabalhar por si e desprender-se do homem, fez a este cair intuitivamente em si de que a técnica é uma função aparte do homem natural, muito independente deste e não presa aos limites deste. O que um homem com suas atividades fixas de animal pode fazer, sabemo-lo de antemão: seu horizonte é limitado. Mas o que podem fazer as máquinas que o homem é capaz de inventar é, em princípio, ilimitado.

4.° Mas ainda resta um traço do artesanato que contribui profundamente para impedir a consciência adequada da técnica e, como os traços anteriores, oculta o fato técnico em sua pureza. E é que toda técnica consiste em duas coisas: uma, invenção de um plano de atividade, de um método, procedimento — mechané, diziam os gregos — e outra, execução desse plano. Aquela é em estrito sentido a técnica; esta é somente a operação e o agir. Em suma: existe o técnico e existe o operário que exercem na unidade da faina técnica duas funções bem distintas. Pois bem, o artesão é, ao mesmo tempo e indivisamente, o técnico e o operário. E o que mais se vê dele é sua manobra e o que menos se vê é sua “técnica” propriamente tal. A dissociação do artesão em seus dois ingredientes, a separação básica entre o operário e o técnico, é um dos sintomas principais do terceiro estádio.

Antecipamos alguns de seus caracteres. Denominamos-lhes “a técnica do técnico”. O homem adquire a consciência suficientemente clara de que possui uma certa capacidade por completo distinta das rígidas, imutáveis, que integram sua porção natural ou animal. Vê que a técnica não é um acaso, como no estádio primitivo, nem um certo tipo dado e limitado de homem — o artesão; que a técnica não é esta técnica nem aquela determinada e, portanto fixas, mas precisamente um manancial de atividades humanas, em princípio, ilimitadas. Esta nova consciência da técnica como tal coloca ao homem, pela primeira vez, numa situação radicalmente distinta da que jamais experimentou; de certo modo, antitética. Porque até ela havia predominado na ideia que o homem tinha de sua Vida a consciência de tudo o que não podia fazer, do que era incapaz de fazer; em suma, de sua debilidade e de sua limitação. Mas a ideia que hoje temos da técnica — reavive agora cada um dos senhores essa ideia que tem — nos coloca na situação trágico-cômica — isto é, cômica, mas também trágica — de que quando somos brindados com a coisa mais extravagante nos surpreendemos atordoados porque em nossa última sinceridade não nos atrevemos a assegurar que essa extravagância — a viagem aos astros, por exemplo — é impossível de realizar. Temos que, assim, no momento de dizer isso chegasse um jornal e nos comunicasse que, tendo-se conseguido proporcionar a um projétil uma velocidade de saída superior à força de gravidade, se havia colocado um objeto terrestre nas imediações da Lua. Isto é, que o homem está hoje, em seu âmago, atordoado precisamente pela consciência de sua principal ilimitação.1 E talvez isso contribui para que já não se saiba quem é — porque ao achar-se, em princípio, capaz de ser tudo o que é imaginável, já não sabe que é o que efetivamente é. E para que não me esqueça ou não venha a ter tempo de dizê-lo, mesmo quando pertence a outro capítulo, aproveito o conexo para fazer observar aos senhores que a técnica, ao aparecer por um lado como capacidade, em princípio ilimitada, faz que ao homem, posto a viver de fé na técnica e somente nela, fique com sua vida vazia. Porque ser técnico e somente técnico é poder ser tudo e, consequentemente, não ser nada determinado. Com ser plenitude de possibilidades, a técnica é mera forma oca — como a lógica mais formalista; é incapaz de determinar o conteúdo da vida. Por isso estes anos em que vivemos, os mais intensamente técnicos que houve na história humana, são dos mais vazios.

ORTEGA Y GASSET, JOSÉ. Meditação da Técnica. Tradução: Luis Washington Vita. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.


  1. Com os foguetes teleguiados da moderna astronáutica parece que o “atordoamento” orteguiano se transformou em autêntica euforia. NT