O funcionamento da ciência no período paradigmático pode ser comparado ao desenvolvimento das tecnologias materiais. Também elas começam por períodos “pré-paradigmáticos”. Assim, no final do século XIX, uma série de pesquisas aqui e ali acabou criando uma nova tecnologia e um novo conceito: o automóvel. No século XX, esse conceito está bem definido. Desse modo, pode-se ver pesquisas ligadas ao que se poderia chamar de “ciência do automóvel”. Semelhantes trabalhos não definem mais os problemas estudados em termos de demandas externas (transportes, conforto etc), mas em termos técnicos, ligados ao “paradigma” do automóvel. Parte-se das pesquisas sobre os motores a explosão, os aceleradores, os carburadores e assim por diante. O objeto de pesquisa está bem definido pelo contexto tecnológico, mais do que pela demanda externa.
Neste sentido, pode-se considerar o período paradigmático como o momento em que uma disciplina científica, tendo determinado e construído o seu objeto, aprofunda a pesquisa nas direções determinadas por suas escolhas paradigmáticas — ocultando em geral a existência dessas escolhas e negligenciando a sua influência (Levy-Leblond, 1982). Para retomar a comparação com as tecnologias, pode-se examinar de que modo a pesquisa em relação ao automóvel dependeu de escolhas feitas no final do século XIX. Foram elas que determinaram todo um programa de pesquisas. De maneira similar, a biologia molecular, uma vez estabelecido o seu paradigma, levou adiante as suas pesquisas utilizando o patrimônio genético como “chave” da hereditariedade (do mesmo modo, levar-se-á adiante as pesquisas em tecnologia automotiva, como se o paradigma do automóvel constituísse a chave dos modernos meios de transporte).
Para compreender os elementos aleatórios da evolução — ou da estagnação — de uma disciplina, poder-se-ia comparar a informática com a cibernética. Um observador superficial do início dos anos 50 teria apostado que, alguns anos mais tarde, a nova disciplina que era a cibernética (estudando os sistemas capazes de corrigir a si mesmos) teria estabelecido o seu paradigma. Ora, nessa época nascia a informática, que atingiu hoje a sua maturidade disciplinar, enquanto a cibernética continua no estágio pré-paradigmático, apaixonante graças a todas as mudanças por ela provocadas, mas sensivelmente menos desenvolvida do que a informática. Pode-se supor que o progresso da ciência dos computadores deve-se ao fato de que ela logo se ligou a desenvolvimentos econômicos, militares e comerciais, apoiados por empresas multinacionais (principalmente uma?), e por uma tecnologia precisa (o computador), ao passo que a cibernética permaneceu uma espécie de clube intelectual, interdiscipiinar, fervilhamento de novas ideias, mas longe daquilo que Kuhn denominou de “ciência normal”.
Quanto ao exemplo da biologia molecular, ele mostra o interesse do período paradigmático. Essa ciência aprimora uma tecnologia intelectual extremamente potente. Aprofundam-se os problemas dentro de um esquema que não se quer modificar. É desse modo que Kuhn comparou a pesquisa em período paradigmático (ou seja, a “ciência normal”) com a resolução de um quebra-cabeças: considera-se que as peças formam um conjunto que se tenta reconstituir. Kuhn comparará também o momento em que se pergunta se não existirão dois quebra-cabeças misturados no período da “revolução científica”, durante o qual se questionam as suas hipóteses fundamentais e o próprio horizonte da pesquisa.
Por ocasião do período paradigmático, pode-se definir o próprio trabalho por referência a um âmbito disciplinar preciso: os pesquisadores se definem como fazendo física, biologia, química, matemática etc. Sentem-se menos inclinados a responder a demandas de conhecimentos vindas da vida externa à disciplina. É durante esse período que a disciplina define as suas questões, de maneira puramente interna; examinaremos adiante o vínculo entre essa atitude e os conceitos populares de “ciências puras” ou “ciências fundamentais”. Pode-se notar, contudo, desde já, que os períodos paradigmáticos possuem um papel importante em relação ao poder social: quando as disciplinas se impuseram (Latour, 1984), enrijeceram os seus conceitos (Stengers, 1987), obnubilaram as suas origens sociais, e os pesquisadores passaram a usufruir de uma relativa independência diante do contexto social dentro do qual evoluem. ([wiki base=”FR”]Gérard Fourez]])