[HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. Tr. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003]

O homem fala. Falamos quando acordados e em sonho. Falamos continuamente. Falamos mesmo quando não deixamos soar nenhuma palavra. Falamos quando ouvimos e lemos. Falamos igualmente quando não ouvimos e não lemos e, ao invés, realizamos um trabalho ou ficamos à toa. Falamos sempre de um jeito ou de outro. Falamos porque falar nos é natural. Falar não provém de uma vontade especial. Costuma-se dizer que por natureza o homem possui linguagem. Guarda-se a concepção de que, à diferença da planta e do animal, o homem é o ser vivo dotado de linguagem. Essa definição não diz apenas que, dentre muitas outras faculdades, o homem também possui a de falar. Nela se diz que a linguagem é o que faculta o homem a ser o ser vivo que ele é enquanto homem. Enquanto aquele que fala, o homem é: homem. Essas palavras são de Wilhelm von Humboldt. Mas ainda resta pensar o que se chama assim: o homem.

A linguagem pertence, em todo caso, à vizinhança mais próxima do humano. A linguagem encontra-se por toda parte. Não é, portanto, de admirar que, tão logo o homem faça uma ideia do que se acha ao seu redor, ele encontre imediatamente também a linguagem, de maneira a determiná-la numa perspectiva condizente com o que a partir dela se mostra. O pensamento busca elaborar uma representação universal da linguagem. O universal, o que vale para toda e qualquer coisa, chama-se essência. Prevalece a opinião de que o traço fundamental do pensamento é representar de maneira universal o que possui validade universal. Lidar, de maneira pensante, com a linguagem significaria, nesse sentido: fornecer uma representação da essência da linguagem, distinguindo-a com pertinência de outras representações. A presente conferência parece pretender a mesma coisa. O título da conferência não é, porém, “sobre a essência da linguagem”. É simplesmente — “a linguagem”. Dizemos “simplesmente” e, com isso, acabamos apresentando um título ainda mais pretensioso do que dizer com simplicidade que se trata de discutir alguns aspectos da linguagem. Pois falar da linguagem talvez seja ainda pior do que escrever sobre o silêncio. Não queremos assaltar a linguagem para obrigá-la a cair nas presas de representações já prontas e acabadas. Não queremos alcançar um conceito da essência da linguagem capaz de propiciar uma concepção da linguagem a ser usada por toda parte e, assim, satisfazer todo esforço de representação.

Fazer uma colocação sobre a linguagem não significa tanto conduzir a linguagem mas conduzir a nós mesmos para o lugar de seu modo de ser, de sua essência1: recolher-se no acontecimento apropriador.

Queremos pensar a linguagem ela mesma e somente desde a linguagem. A linguagem ela mesma: a linguagem e nada além dela. A linguagem ela mesma é linguagem. O entendimento escolado na lógica, habituado a empreender cálculos sobre tudo e isso quase sempre com arrogância e exaltação, considera essa frase uma tautologia vazia, uma frase que nada diz. Dizer o mesmo duas vezes: linguagem é linguagem, para onde isso haveria de nos levar? Não queremos, porém, ir a lugar nenhum. Queremos ao menos uma vez chegar no lugar em que já estamos.

Martin Heidegger