Husserl – Os limites da redução cartesiana

A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, trad. E. Gerrer, Les Études Philosophiques, IV, 1959, p. 281

O que a época moderna chama teoria da inteligência ou da razão e, de uma maneira bem significativa, crítica da razão, problemática transcendental, tira as raízes do seu sentido das Meditações Cartesianas. A Antiguidade não conhecia nada de semelhante pois ignorava a époché cartesiana e o seu ego. É assim que, com Descartes, começa verdadeiramente uma maneira completamente nova de filosofar que busca os seus fundamentos últimos no subjetivo. Mas que Descartes se tenha refugiado no puro objetivismo, apesar do seu fundamento subjetivo, não se torna possível senão pelo fato de a mens, na époché, era primeiramente para si e passava para o plano de conhecimento absoluto dos fundamentos das ciências objetivas (de uma maneira universal, da filosofia) parecer fundada ao mesmo tempo nesta, isto é, na psicologia, como um tema legítimo. Descartes não vê que é impossível que o ego, o seu Eu que, pela époché, já não é do mundo, cujas cogitationes, pelas suas operações, dão ao mundo toda a significação de ser que o mundo jamais pode ter para ele, possa apresentar-se no mundo como um tema, pois tudo o que é do mundo tira precisamente o seu sentido destas operações, portanto também o ser psíquico pessoal, o Eu no sentido vulgar. Ainda menos naturalmente, não chegou a considerar que o ego, tal como é descoberto na époché, como sendo para si mesmo, não é ainda, de modo nenhum, «um» Eu, que pode ter outros ou muitos co-Eus fora dele. Ficou-lhe escondido que todas estas distinções como Eu e Tu, interior e exterior, se «constituem» somente no ego absoluto. É assim que se compreende porque é que Descartes, na sua pressa de fundar o objetivismo e as ciências exatas como permitindo um conhecimento metafisicamente absoluto, não se ponha o problema de examinar sistematicamente o puro ego — ficando logicamente na époché — para saber que atos e que potência lhe são próprios e o que neles chega a produzir como efetuação intencional. Como não se demora, o formidável complexo de problemas não se lhe pode abrir: partindo do mundo como «fenômeno» no ego, perguntar sistematicamente em que ações do ego, imanentes e podendo ser verdadeiramente mostradas, o mundo recebeu a sua significação de ser. Uma analítica do ego como mens era, manifestamente, para ele, assunto da futura psicologia objetiva.