Quintão – intencionalidade e ciência

QUINTÃO, Denise. Seguindo o Todo por toda Terra – Uma Fenomenologia do Arcaico nos Gregos. Teresópolis: Daimon Editora, 2007

A intencionalidade, que reduz o real à uma objetivação teórico-fenomenológica, o entende como um sistema, um conjunto de unidades, articuladas por subordinação e coordenação. A fenomenologia da ciência produz uma atitude que se realiza num projeto de experimentação, verificação e certeza do real, sistematicamente, objetivado. O aspecto noemático dessa generalização varia de acordo com a face visada da multiplicidade de modos de apresentação do fenômeno para a consciência. Segundo a fenomenologia de Husserl, o que caracteriza, ou não, uma ciência como objetiva não é o tema, que pode, até mesmo, ser Deus, ser o homem, a angústia coletiva, mas o rigor e a universalidade da investigação, sobre a totalidade ôntica do objeto. Basta dizer que a teologia, hoje, está se desfigurando numa positividade, que tem a pretensão de negar o mistério.

A ciência objetiva sofre o limite de não poder refletir sobre a constituição originária da consciência, na qual emerge e se estrutura. Isto não é uma escolha da ciência, mas faz parte de sua constituição: ela não pode querer olhar para si mesma enquanto ciência, pois seu olhar projeta-se, sempre, para fora de si mesma, visa o diferente de si mesma. Assim, a ciência nunca alcança, na fenomenologia do fenômeno, a comunhão total, unificante, de todos os seres e realizações. A epoché, que proporciona a evidência científica suspende, por um lado, os juízos naturais, mas dedica-se, por outro, à construção de outros juízos objetivantes e teóricos, tomando impossível, para Husserl, o salto da transformação, a partir dessa generalização teórico-fenomenológica. É o erro que comentem os ideólogos de todos os tempos, achando que a conquista de uma mudança, no sistema da organização, é capaz de transformar o modo de ser homem. A ideologia não consegue avaliar a diferença entre a simples mudança e a transformação radical. Acha, por exemplo, que a introdução do chip numa cultura é um fato, por si só, revolucionador, capaz de acarretar uma transformação originária. No entanto, o chip é o aprofundamento de um processo que se desenvolve, há muito tempo, através dos percalços da história moderno-contemporânea. Só uma radicalização, oriunda do interior de própria consciência (no caso de Husserl, a radicalização se dá na imanência da consciência), pode (no sentido de ter a possibilidade) realizar no mundo um novo horizonte Essa, a lição que Platão, Santo Agostinho, Duns Escoto, Mestre Eckhart, Joaquim di Fiori, Nicolau di Cusa, Pascal, Heidegger, Husserl e todos os outros grandes pensadores, da história do pensamento, aprenderam e ensinaram.

O sentido de universalização, de que hoje tanto se fala na globalização c mundialização, é, na verdade, resultado de uma perspectiva parcial, que se realiza como uma generalização objetivada da consciência teórico-fenomenológica da ciência. É uma generalização que não tem o rigor necessário para alcançara evidenciação das estruturas essenciais, constantes cm qualquer experiência natural ou qualquer teoria. Este entendimento de universalidade, como generalização de uma parte, decorre c desenvolve-se no horizonte da ciência, um horizonte instalado por uma intencionalidade que objetiva o mundo da vida como ciência. Tudo é ciência. A visada da ciência busca nos fenômenos a indiferença e a impessoalidade da eficiência e das funções. A funcionalidade e a eficácia da ciência se firma e confirma na medida em que se expande pelo mundo afora, a partir da experiência ocidental. Essa expansão quantitativa e tecnológicamente virtual, a ciência chama de universalização. Mas a ciência europeia-ocidental, a ciência objetiva1, não se preocupa com o qualitativo, com a correlação entre a funcionalidade da ciência e as diferenças humanas, as diferenças do mundo da vida. A universalização qualitativa é aquela que visa as estruturas essenciais, presentes nos diferentes encaminhamentos da ciência. Volta-se para o todo de qualquer particular, assegurando a originariedade e a autenticidade das diversas práticas de vida.

A objetivação científica é uma das possíveis realizações da consciência teórico-fenomenológica, consciência sempre vigente, em diversos modos, na história da metafísica. A tematização de diferentes reduções, desenvolvida por Husserl, é própria da história metafísica, não se aplica, de forma alguma, a um modo de ser não metafísico, como o arcaico dos pré-socráticos, pela profunda diferença no modo de ser. O exercício dessas reduções correlaciona-se com intencionalidades diferenciadas e voltadas para práticas distintas. A intencionalidade, que tematiza os diversos tipos de redução, não é compatível com a experiência arcaica dos gregos: tudo é celebração do divino na ordinariedade da vida, cozinhar, comer, plantar, cantar, pensar, viver, brotar, nascer, morrer, procriar, gerar, criar, chover.

As reduções, por sua vez, se cumprem, sempre, numa articulação lógico-relacional entre si, o que pressupõe, que sejam independentes e diferentes. A exceção é a redução natural da experiência natural, base constitutivamente necessária para qualquer outra redução. O modo de ser arcaico não conhece a independência e a diferença entre as realizações. Para o arcaico do grego, o real realiza-se por uma dinâmica de comunhão originária, na qual as diferenças se identificam numa recíproca co-pertença. O homem é um ser privilegiado, livre e responsável, capaz de receber, transparentemente, as doações da origem.

A objetivação do real na fenomenologia de Husserl pertence à mentalidade contemporânea. Determina-se por um processo intencional de significação, no qual a apreensão da realidade, a partir de e em qualquer nível de objetivação, seja natural, seja fenomenal, ou eidético, relaciona-se, sempre, com um lançar-se da consciência, como um todo, para o outro de si mesma, inaugurando um horizonte de significações e objetivações. Essa abertura é a consciência transcendental.


  1. Há outros tipos de ciência, na verdade, assim chamadas, pela nivelização que a ciência ocidental extende a partir de si a todos os fenômenos. Essas ciências seriam, por exemplo, as medicinas alternativas do oriente e outras civilizações, a astrologia budista. Esses conhecimentos lidam na prática, que desenvolvem, com a abertura do ser, com as transformações contínuas da vida. Emergem e se exercitam, cada vez, a partir das possibilidades dadas pelo real. Não são axiomáticas.