de Castro – A ontologia instrumentalista inicial de Heidegger.

A orientação instrumentalista de Ser e Tempo pode ser prontamente reconhecida na seguinte afirmação: “Manualidade (Zuhandenheit) é um modo pelo qual os entes como são em si mesmos são definidos ontológico-categorialmente.” (SZ:71) Sobre esta afirmação Heidegger nota que na vida diária do camponês e o trabalhador, “a madeira é uma floresta de lenha, a montanha uma pedreira, o rio um potencial hidráulico, o vento é o vento na velas” (SZ:70). Vinte anos depois, alcançada sua concepção da tecnologia moderna, afirma que na era tecnológica “a terra agora se revela como um mina de carvão, o solo como um depósito mineral…” (Questão da Técnica).

Embora similares estas afirmações levam Dreyfus a propor que Ser e Tempo ocupa uma passagem fundamental entre uma compreensão tecnológica do ser e a compreensão instrumentalista grega do ser. O instrumentalismo de ST não é ainda totalmente tecnológico, porque configura o equipamento não em termos de tecnologia matematicamente estruturada mas em termos de atelier do artesão. Além do mais, ST ainda não fala da natureza como “dis-ponibilidade” (Bestand) indiferenciada. No entanto, apesar de qualquer similaridade entre o atelier descrito em ST e a oficina industrial, Heidegger localizou a oficina em um “mundo” que parece crescentemente tecnológico.

Descrevendo o atelier como uma “região” relativamente autônoma, Heidegger explica que esta região é um elemento de uma totalidade de regiões, “a mundanidade do mundo” (SZ:86), o que para Dreyfus significa uma expansão do local para um global. Ele reconhece que esta tendência a totalizar é um fenômeno especificamente moderno, ainda não revelado. Desde o princípio Heidegger discerniu este movimento totalizador no modo da humanidade moderna de estar “próxima” a coisas. Somente o Desein existe em um mundo; logo, somente o Dasein pode estar próximo ou afastado dos entes que se apresentam dentro do mundo. Um pedra pode estar tocando outra, mas não “próxima” a outra, do mesmo modo que uma pessoa está próxima de um familiar, mesmo distante. Heidegger usou o termo entfernen, aproximadamente traduzido por “dis-tanciar” de algo, para descrever o processo ontológico de a-proximar as coisas. A tentativa de fazer tudo igualmente próximo e disponível emerge da ontologia crescentemente unidimensional da modernidade: tudo aparece ser nada além de várias espécies de matéria que podem ser usadas e trocadas á vontade. Todas as maneiras pelas quais aceleramos as coisas, como somos mais ou menos compelidos hoje em dia, nos levam em direção a conquista do distante. Com o rádio, por exemplo, Dasein expandiu de tal modo seu ambiente cotidiano que realizou uma dis-tanciamento do “mundo” — um dis-tanciamento que, em seu sentido para o Dasein, ainda não pode ser visualizado”. (SZ:105)

Heidegger argumenta que a moderna humanidade não mais “habita” autenticamente a Terra. Mais tarde, em suas palestras sobre Hölderlin, afirma que habitar ocorre somente quando os entes são “reunidos” (versammelt) em um mundo no qual a integridade das coisas é preservada. Este mundo seria intrinsecamente “local”, limitado ao lugar de um modo totalmente estranho ao alcance planetário da moderna tecnologia.