Husserl (Krisis) – O problema do mundo da vida e as ciências objetivas

A ciência é uma obra espiritual do homem que pressupõe como ponto de partida, historicamente e também para quem quer que a estude, o mundo ambiente da vida, mundo da intuição universalmente pré-dada como existente; mas além disso, na sua aplicação e no seu desenvolvimento, a ciência pressupõe também continuamente este mundo ambiente enquanto se dá ao sábio a cada instante. Para o físico, por exemplo, é o mundo no qual ele vê os seus instrumentos de medida, ouve as batidas do metrônomo, avalia grandezas percepcionadas, etc, é este mundo no qual, para mais, ele se sabe a si mesmo compreendido com toda a sua atividade e todos os seus pensamentos teóricos.

Quando a ciência põe questões e formula respostas, são, desde o princípio e com toda a necessidade, não deixarão de ser, questões postas sobre o solo desse mundo pré-dado, questões dirigidas à realidade desse mundo no qual justamente tem lugar a sua práxis como qualquer outra práxis da vida. Já neste mundo, o conhecimento na sua qualidade de conhecimento pré-científico desempenha um papel constante, com os objetivos que, no sentido em que ele os visa, atinge também suficientemente no conjunto para tornar possível a realização de uma vida prática. Só que um novo tipo de humanidade (humanidade filosófica e científica), surgido na Grécia, se viu levado a transformar a ideia pragmática de «conhecimento» e de «verdade» da existência natural e a atribuir a mais alta dignidade, a de uma norma de todo o conhecimento, à ideia recém-formada da «verdade objetiva». É em relação com esta norma que nasce finalmente a ideia de uma ciência universal abarcando na sua infinidade todo o conhecimento possível, a audaciosa ideia diretriz que guiou os tempos modernos. Uma vez que tomamos consciência desta subversão, a elucidação explícita da validade objetiva e de toda a tarefa da ciência exige manifestamente que na nossa interrogação regressemos primeiramente ao mundo pré-dado. Pré-dado é-o ele naturalmente a todos nós enquanto somos pessoas que vivem no horizonte da nossa co-humanidade, logo em conexão total com outros homens, como sendo «o» mundo, aquele que é comum a nós todos. Assim este mundo é, como já expusemos em pormenor, o solo permanente de toda a validade, uma fonte sempre disponível de evidências naturais na qual espontaneamente bebemos, sejamos homens da prática ou sábios.

(Die Krisis der europäischen Wissenschaften, Husserliana, VI, La Haye, M. Nijhoff, 1954, pp. 123-124, trad. A. L. Kelkel e R. Schérer).