Harada (Estudo) – Teoria ingênua das ciências

Hoje, se quisermos saber o que é ciência, devemos recorrer à assim chamada teoria das ciências. Parece que um outro termo para indicar essa disciplina é meta-ciência.

Mas o problema, aqui, aliás como em toda parte hoje, é que existem várias teorias das ciências, de diferentes níveis e procedências. No entanto, aos poucos, a consciência crítica acerca da própria ciência, surgida dentro das próprias ciências, começa a nos dizer o que é obsoleto dentro da teoria das ciências. Vamos enumerar uma dessas compreensões obsoletas que pode muito bem povoar também as nossas mentes clericais quando falamos das ciências hoje ou quando falamos da necessidade de estarmos aggiornados para nossa era científica. O que se segue está baseado no artigo de Heinrich Rombach, intitulado “Wissenschaftstheorie und Philosophie”1. Aqui daremos um pequeno resumo de parte desse artigo.

Trata-se de uma concepção das ciências que poderíamos chamar de teoria ingênua das ciências. Embora obsoleta, essa teoria ingênua das ciências está presente ainda hoje em toda parte, na nossa compreensão usual e popularizada da ciência, nas publicações, mesmo especializadas, sobre o assunto e na mente de muitos cientistas, eles mesmos.

O que caracteriza a teoria ingênua das ciências e a ingenuidade ou a boa fé despreocupada com que generaliza e absolutiza, sim dogmatiza e fixa um conceito unilateral da ciência? Em geral, o teorético ingênuo das ciências retira da ciência esse conceito unilateral, ciência na qual ele é especialista. Ele faz essa generalização porque acredita ingenuamente que existe uma única espécie de cientificidade. Conforme essa crença, haveria também historicamente uma única forma de cientificidade. Podem se multiplicar conhecimentos científicos, surgirem novas ciências, evoluir, mas todas elas têm o mesmo conceito de ciência. Em todas elas, a cientificidade é sempre a mesma. É o modo típico de pensar de A. Comte, quando fala de “regime définitif de la raison humaine”, i.é, a era da ciência positiva. É o conceito de ciência do positivismo em todas as suas nuances e variantes. Segundo essa concepção de ciência, tudo que está fora dela ou anterior a ela é um “conhecimento” relativo e subjetivo, privativo-histórico. O saber científico, ao contrário, é objetivo, definitivo, real, absoluto e supra-histórico.

Assim, a teoria ingênua das ciências se caracteriza pelos seguintes preconceitos:

a) Ciência é uma forma de saber, determinada, estável, constatável, sobre a qual se podem dar informações bem determinadas, estáveis e constatáveis. Essas informações nos dizem o que é objetivamente ciência e nos dão a medida geral da cientificidade de toda e qualquer ciência.

b) Assim, existe propriamente apenas uma única ciência (e uma só cientificidade). A multiplicidade das ciências surge apenas devido à multiplicação dos objetos da ciência. Em sua multiplicidade, as ciências são como que diferentes objetos sobre os quais se empostam as miradas científicas, cuja estrutura e cujo modo de ser é único. Por isso, quem conhece uma ciência conhece a ciência.

c) Há certamente evolução, desenvolvimento nos conhecimentos científicos. Há correturas e revisões dos conhecimentos científicos. No entanto, tudo isso ocorre dentro do horizonte de uma única, bem determinada, estável e definitiva definição de cientificidade da ciência. Por isso, através das histórias de desenvolvimento dos conhecimentos científicos corre uma linha contínua e bem definida do que seja e o que deve ser ciências. O conceito de ciência não tem história. História só têm os conhecimentos que, dentro desse conceito, evoluem, crescem segundo a cientificidade. A história dos conhecimentos científicos se dá dentro de um horizonte de cientificidade único, supra-histórico e imutável.

d) Por mais diferentes que sejam as ciências, o desenvolvimento e o alargamento dos conhecimentos científicos se dão dentro de um horizonte de cientificidade, de tal sorte que se pode constituir um progresso sistemático e lógico sem lacuna. Tudo que não segue essa lógica ou está fora dela só tem valor de verdade enquanto de alguma forma é redutível a ela.

É interessante observar que essa teoria ingênua das ciências, que está no fundo de nossa compreensão usual da ciência, cai num dogmatismo muito semelhante ao que encontramos na teologia, onde a ciência é considerada um conjunto de conhecimentos perenes, verdadeiros, atemporais e imutáveis. Só que, aqui na teologia, esse modo de ser do conhecimento pode não ser um dogmatismo, visto que o modo de ser dos dogmas, que aparentemente parece ser dogmatismo, pode provir do modo de ser próprio e adequado da ciência sui generis chamada teologia; ao passo que, nas ciências, onde se pretende ser radicalmente questionador e crítico, o maior pecado que se pode cometer é o dogmatismo.

Começamos a despertar para a consciência crítica da nova teoria das ciências quando abandonamos esse dogmatismo camuflado da teoria ingênua das ciências e compreendemos que, em diferentes ciências reais, devem se formar e ativar cada vez diferentes tipos de ciências. É que não existe a ciência, mas apenas ciências. E se, de alguma forma, pudermos falar de ciência como uma totalidade, essa totalidade não é uma estruturação geral e única, segundo a qual as ciências devem ser logicizadas, mas sim um organismo dinâmico, complexo e riquíssimo de diferenciações, níveis e dimensões, constituído pelas ciências particulares, que através das diferenças de cada tipo de ciência, num movimento dinâmico de confrontos, correturas, entrechoques, subsumpções mútuos, vai crescendo numa transmutação contínua.

Assim, o reinado do absolutismo do conceito unilateral da ciência está no fim. É o que nos vem demonstrando o avanço das ciências, que progridem não tanto pelo alargamento e quantificação de novos dados e novas descobertas, dentro de um determinado horizonte de pesquisa, mas pela destruição de suas pressuposições e seus conceitos fundamentais, através das crises de seus fundamentos, para abrir-se a um horizonte novo, mais profundo, mais vasto e mais originário. Assim, viemos assistindo a sucessivas quedas da monarquia do conceito racionalístico de ciência de modelo matemático e lógico, do conceito empíristico-positivista nos moldes da física e da biologia, do conceito materialista nos moldes da química, do conceito relativista nos moldes da historiologia etc. etc. A nova consciência científica hoje tem a tarefa principal de desmascarar essas superstições do dogmatismo que se infiltram nas ciências. Ela, a consciência científica nova, nessa tarefa de desmascaramento, não vai contra a cientificidade das ciências. Pelo contrário, em desmascarando a absolutização e hipostatização auticientíficas dos conceitos unilaterais da ciência, tenta abrir caminho à cientificidade mais humana e plena de um saber científico futuro, que se avia na medida em que, numa reflexão de fundo em direção à raiz de cada tipo de ciência, desencadeia um confronto e diálogo universal de todas as ciências mutuamente entre si.


  1. In: ROMBACH, H. (ed.). Wissenschaftstheorie. Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1974, p. 12-19.